quarta-feira, 4 de abril de 2007

Cena 9

COMO SE CRIA UM ASSASSINO – PRIMEIRA PARTE

No camarim de MÃEZINHA.

(Sempre seguida de DONA VIRGINIA, MÃEZINHA entra decidida e se põe a procurar algo.)

DONA VIRGÍNIA –... Ah, mas isso não se faz, dona Mãezinha, onde é que já se viu uma coisa dessas?! Como é que vai chamando uma pessoa de ladrão assim sem mais nem menos?! Não... Nem quando a gente tem a certeza absoluta ainda tem que pensar duas vezes antes de acusar, não é verdade? Porque isso é uma coisa muito delicada, que está pensando? ...É uma coisa muito séria!...

(MÃEZINHA abre a cortina de um armário e pára. Fecha rapidamente a cortina e muda de expressão.)

DONA VIRGÍNIA – Agora, uma coisa que não me entra de jeito nenhum é como é que a senhora ainda atura uma bisca dessas aqui dentro do seu teatro... Ah, a senhora é muito boa, viu dona Mãezinha?... Não é nem boa, é uma santa, porque se fosse comigo, ah, se fosse comigo...

MÃEZINHA – (cortando) Dona Virgínia.

DONA VIRGÍNIA – Heim?!

MÃEZINHA – A senhora quer sair um pouco? Faz favor.

DONA VIRGÍNIA – Heim?!

MÃEZINHA – (fica imóvel)

DONA VIRGÍNIA – Ah... Ah! Sei...(ri) Sei... (vai saindo). (Volta-se) A senhora não precisa de alguma coisa? Porque se não é só dizer que...

MÃEZINHA – (cortando) Faz favor, Dona Virgínia.

DONA VIRGÍNIA – (ri) Ah, sei... (e sai de uma vez).

(MÃEZINHA vai até a porta e fecha-a rapidamente. Depois senta-se lentamente.)

MÃEZINHA – Campônio.

(Silêncio)

MÃEZINHA – Sai daí.

(Silêncio).

(MÃEZINHA se levanta de repente, vai até o armário e puxa a cortina num golpe.)

MÃEZINHA – Sai daí, seu desgraçado.

CAMPÔNIO – Tô bem aqui.

MÃEZINHA – (estendendo a mão) Me dá.

(Silêncio.)

MÃEZINHA – (forte) Me dá’qui.

CAMPÔNIO – Dá o quê? Dá o quê? Eu não fiz nada, não.

MÃEZINHA – (tirando-o do armário na marra) Eu não te perguntei se você fez ou não fez, infeliz. Eu tou te mandando me dá’qui o que você pegou daquele camarim Campônio...

CAMPÔNIO – Ai, ai, ai, ai, ai...

MÃEZINHA – (gritando) Me dá’qui.

CAMPÔNIO – Não.

MÃEZINHA – O quê?!

CAMPÔNIO – (segurando algo com as duas mãos de encontro à barriga) Não dou, não dou, não dou, não dou, não dou...

MÃEZINHA – (lutando com ele) Ora pois, então nós vamos ver se você me dá ou não me dá seu sem vergonha mesmo, me dá’qui se não eu te faço nem sei o quê...

CAMPÔNIO – (ao mesmo tempo) não dou, não dou, não dou, não dou...

MÃEZINHA – Eu te mato, Campônio.

CAMPÔNIO – NÃO DOU.

(Pausa. Os dois estão ofegantes.)

MÃEZINHA – Tá bom. (Senta-se. Suspira) Tá bom. Se você não quer dar, o que é que eu posso fazer, né? Nada. Na força é que eu não vou conseguir mesmo, né? Você é um tamanho homem de quase trinta anos, né?...

CAMPÔNIO – Trinta.

MÃEZINHA – ...Pois é. Quase trinta anos. E eu sou só uma mulher, né? Uma mulher fraca...

CAMPÔNIO – Trinta. A senhora disse. A senhora disse.

MÃEZINHA – Então.

CAMPÔNIO – Não vai dizer que não. Eu ouvi direitinho a senhora dizer.

MÃEZINHA – É.

CAMPÔNIO – Quase trinta. A senhora disse. A senhora sabe.

MÃEZINHA – Sei.

CAMPÔNIO – Quer dizer que a senhora sabe muito bem, mãe. A senhora sabe que eu não sou mais um menino, mãe.

MÃEZINHA – Chega.

CAMPÔNIO – A senhora sabe muito bem que eu não posso mais ser menino prodígio, mãe...

MÃEZINHA – Chega, Campônio, CHEGA. Eu não quero discutir isso de novo.

(Pausa)

MÃEZINHA – Agora uma coisa eu vou te dizer, viu? Não foi pra isso que eu te criei. Não foi pra isso que eu trabalhei que nem um burro de carga, fiz tanto sacrifício na minha vida pra depois ficar aí ouvindo essa mulherzinha à-toa...

CAMPÔNIO – Não.

MÃEZINHA – ...dizer que você é ladrão...

CAMPÔNIO – À-toa não.

MÃEZINHA –... e dizendo aí no meio do palco, em alto e bom tom, pra quem quiser ouvir.

CAMPÔNIO – (baixinho) À-toa, não. (e alisa o que tem entre as mãos).

MÃEZINHA – Então. E é bem feito pra mim que no fim de tudo ainda tenho que ouvir isso e ficar quieta, né? Ouvir dizer do meu próprio filho que ele é ladrão e não pode dizer nada, né? Então. Idiota é o que eu fui, isso sim. Uma grandíssima idiota de ter me matado tanto. Eu podia muito bem ter feito como as outras que deixavam os filhos soltos e, ó: nem te ligo se eles aprendiam o que era bom ou o que não prestava. E é lógico, né? Que solto na rua, no meio da vagabundagem, ninguém aprende nada que preste. Então. Mas eu não. Era só o circo chegar num lugar e eu corria na escola mais perto e toca a convencer a professora de te deixar estudar lá, e elas não queriam, né? Porque o ano já tava no meio ou porque dali a dois meses o circo ia embora e você com ele, né? E eu lá, insistindo, gastando a minha saliva até que ela concordasse. Sim, porque filho meu tinha que estudar, tinha que ser alguém na vida, não era ficar lá à-toa misturado com aqueles moleques de circo só aprendendo o que não devia. Ah, meu Deus, quanta preocupação, quanto trabalho pra segurar o menino dentro da barraca, e não anda com fulano, e se eu te pegar mais uma vez brincando com siclano eu te mato, e come verdura que faz bem pra cabeça porque você precisa estudar muito pra alcançar os outros que estão mais adiantados. E de noite era em cima do palco e de olho na barraca pra ver o que tu tava fazendo, se estava estudando, se dormia cedo, senão amanhã fica com sono e não consegue prestar atenção na professora... Cheguei até a brigar com o dono de uma Companhia! Ah, não, o menino eu não permito que aprenda número nenhum, não. Faz só o do jornaleiro que não precisa treinar muito, que senão fica treinando, treinando e ainda me acaba atrapalhando os estudos dele, e o que importa mesmo é estudar pra ser alguém na vida...

(Pausa. CAMPÔNIO está no chão, protegendo o que tem entre as mãos.)

MÃEZINHA – (de repente, noutro tom) E tudo isso pra quê? Me diga: pra quê? Pra ouvir aí da boca de uma decaída qualquer... (Agressiva) Campônio, me dá isso aqui.

CAMPÔNIO – Não.

MÃEZINHA – A gente põe no camarim dela quando ela não estiver lá e pronto, ela não vai poder dizer mais nada... (e avança para ele tentando, outra vez, tirar o que tem entre as mãos).

CAMPÔNIO – Não. Não, não, não...

MÃEZINHA – (com raiva) Aquela biscatona vai ter que engolir o que disse de você aí na frente de todo mundo. Me dá’qui...

CAMPÔNIO – Não vou dar, não. Não dou.

MÃEZINHA – Vai sim, vai dar nem que eu tenha que fazer picadinho de você...

(MÃEZINHA consegue pegar uma ponta do que CAMPÔNIO tem entre as mãos).

MÃEZINHA – Me dá’qui.

CAMPÔNIO – Vai rasgar.

MÃEZINHA – Qui m’importa.

CAMPÔNIO – Vai rasgar. Larga...

MÃEZINHA – Larga que se não eu rasgo.

CAMPÔNIO – NÃO.

(CAMPÔNIO larga. MÃEZINHA examina apressadamente o que ele tinha entre as mãos: é uma calcinha de renda preta.)

MÃEZINHA – Campônio!

CAMPÔNIO – Me dá’qui, mãe.

MÃEZINHA – Meu Deus, Campônio, o que é isto?!

CAMPÔNIO – A senhora não tinha nada que ver, mãe. É minha. É minha.

MÃEZINHA – Meu Deus do céu, Campônio, você ficou maluco?!

CAMPÔNIO – É minha, mãe, me dá’qui! (e avança)

MÃEZINHA – Sai daqui.

CAMPÔNIO – (lutando) Fui eu que peguei. É minha. Me dá.

MÃEZINHA – Me dá, é? Seu filho da puta.

CAMPÔNIO – É minha.

MÃEZINHA – Pois toma. Toma. (batendo nele.)

CAMPÔNIO – Ai...

MÃEZINHA – Eu tenho nojo de você. Eu tenho nojo.

CAMPÔNIO – (fugindo) Ai, mãezinha, ai...

MÃEZINHA – (atrás dele, batendo) Nojo. Nojo.

CAMPÔNIO – (se defendendo) Ai, mãezinha, não... na cabeça não, mãezinha...

MÃEZINHA – (batendo) Asqueroso. Nojento.

CAMPÔNIO – (se enroscando) Na cabeça, não. Vai me dar. Vai me dar aquilo outra vez.

MÃEZINHA – Campônio!

CAMPÔNIO – Na cabeça não pelo amor de Deus.

MÃEZINHA – (indo pra ele) Campônio, o que é isso? Meu filho...

CAMPÔNIO – (se protegendo) Não... Chega. Chega pelo amor de Deus. Vai me dar aquilo.

MÃEZINHA – (abraçando-o) Campônio.

CAMPÔNIO – Ai...

MÃEZINHA – Você é doente, meu filho...

CAMPÔNIO – Ai, mãezinha me ajuda. Não deixa me dar aquilo de novo.

MÃEZINHA – Não, não. Não deixo não...

CAMPÔNIO – Ai, me ajuda mãezinha...

MÃEZINHA – Pronto. Pronto. Não foi nada.

CAMPÔNIO – Ai...

MÃEZINHA – Já passou. Olha aí, já passou. Pronto.

(Batidas na porta)

BRILHANTINA – (fora) Dona Mãezinha.

MÃEZINHA – (embalando CAMPÔNIO) Pronto.

CAMPÔNIO – (geme baixinho).

BRILHANTINA – (fora, batendo) Dona Mãezinha.

(MÃEZINHA embala CAMPÔNIO, que geme baixinho.)

MÃEZINHA – Pronto. Não precisa chorar mais. Não vai doer mais. Não vai doer. Eu não me lembro da dor. (Lentamente.) Estava chovendo muito. Foi no ano que o cometa apareceu. A Companhia tinha falido e a gente vinha voltando. Voltando pra onde? A gente vinha no caminhão. Eu estava sozinha em cima. Me lembro que olhei pra fora para ver se vinha o cometa. Mas estava chovendo muito. Eu só via o campo, ali, sozinha. Eu não me lembro da dor. Só me lembro que queria ver o cometa. Diziam que o mundo ia acabar naquele ano. E da chuva batendo na lona. Eu só via o campo. Eu peguei assim e te botei em cima da minha barriga. Só quando o caminhão parou, nem sei quanto tempo depois, foi que cortaram o umbigo.

(CAMPÔNIO geme baixinho.)

(Tempo.)

(Batidas na porta.)

BRILHANTINA – (pondo a cabeça na porta) Dá licença, dona Mãezinha...

MÃEZINHA – (escondendo rapidamente a calcinha) Que é?

DONA VIRGÍNIA – (interrompendo por trás de BRILHANTINA) Olha, eu disse pra ele que a senhora estava muito nervosa por causa daquele negócio da outra lá, né? E que queria ficar sozinha, mas ele disse...

MÃEZINHA – Tá bom, tá bom. O que foi?

BRILHANTINA – É que tem uma... uma mocetona aí, quer dizer, está querendo falar com a senhora...

DONA VIRGÍNIA – Linda, linda, linda. Toda de branco.

MÃEZINHA – Quem é?

BRILHANTINA – Não sei não, mas parece que é coisa fina...

DONA VIRGÍNIA – (vendo CAMPÔNIO) Mas o que é que ele tem? Ele está se sentindo mal?

MÃEZINHA – Não. Está tudo bem. (Para BRILHANTINA) Não perguntou o nome?

BRILHANTINA – Me esqueci. Quer dizer, também não era pra menos, né? Eu fiquei tão abobado que me esqueci até do MEU nome...

DONA VIRGÍNIA – (olhando CAMPÔNIO) Mas ele está tão esquisito, dona coisa...

MÃEZINHA – (para si mesma) Ah, deve ser a... (Para BRILHANTINA) Tá bom, eu já vou lá... (e se arruma um pouco).

BRILHANTINA – Coisa fina, viu? Coisa finíssima... (Sai).

DONA VIRGÍNIA – A senhora tem certeza que ele tá passando bem?

MÃEZINHA – Tenho. Vamos.

DONA VIRGÍNIA – (saindo) Credo. Ele tá com uma cara...

MÃEZINHA – (da porta) Campônio, você me espera aqui que eu já volto. (Para si) Acho que dessa vez eu dou um jeito na nossa vida. (Autoritária) Você me espera aqui. (Sai).

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