Primeira Parte
Na qual se apresentam os artistas, os personagens que eles vão viver e a história que se vai contar.
Quando o publico vier (se vier), lerá tabuletas – na porta do teatro, no saguão, nas paredes da sala, num canto do palco... – que anunciam: HOJE, CORAÇÃO MATERNO.
Os ARTISTAS devem estar nos seus afazeres normais: a que fará MÃEZINHA na bilheteria, o que viverá BRILHANTINA recebendo os ingressos, etc... O ator que viverá CAMPÔNIO, com um tabuleiro, pode estar vendendo pirulitos de caramelo (daqueles cônicos, que se vendem em circos). A atriz que fará AMADA AMANDA pode estar vendendo retratos seus autografados. E vende assim: ela joga um lenço no ombro de um cavalheiro; quando ele se volta, então ela mostra o retrato.
Cena 1
(Avant-prólogo) – ABERTURA
Na frente da cortina.
(Apagam-se as luzes da platéia. Rufo na bateria. Acende-se um spot-móvel, no meio da cortina. Entra RUY CANASTRA - O APRESENTADOR.)
APRESENTADOR – Senhoras e senhores, rapazes e senhoritas, crianças... BOA NOITE!!! (Silêncio. O Apresentador imobiliza o gesto de grande apresentador para grande publico. Desconfiado) Boa noite. (tempo. Para os bastidores:) Mas o que é que esta acontecendo? Não tem espetáculo hoje e ninguém me avisa nada? (protegendo os olhos da luz, para a platéia:) Não tem ninguém aí? Ô Brilhantina...
BRILHANTINA – (O operador do spot-móvel) Ham?
CANASTRA – Brilhantina, ilumina ali pra ver se tem gente.
BRILHANTINA – Se tem gente onde?
CANASTRA – Na platéia, sua besta,
BRILHANTINA – Ah...
(O spot-móvel percorre a platéia)
CANASTRA – Ah, bom... tem gente sim, olha aí... É... Não é nenhum Pacaembu em dia de jogo do Corinthians, mas ate que não está mau...
BRILHANTINA – (Gargalhada)
CANASTRA – É ou não é, Brilhantina? (para a platéia) o outro gosta de tirar um sarro... Não, mas é verdade, sô, quê que é? A gente leva um susto mesmo... a gente chega aí todo frajola e tal e "boa noite"... e nada?! É pra ficar mau dentro das calças mesmo, é ou não é? A gente pensa que não veio ninguém! Já pensou?
BRILHANTINA – (Gargalhada)
CANASTRA – O outro ali dá risada, mas é sério. Os senhores se ponham na minha situação. A gente arruma tudo... é, porque lá dentro está tudo arrumado como manda o figurino... E o trabalho que dá, caboc’o, vou te contar! E é vestimenta, e pinta cenário, e é coisa que não é bolinho. E a gente combina tudo direitinho como vai ser no dia... Ensaio, né? Então. E a gente se fantasia todo, olha só: manja só a estica, dá só uma olhada... Até cartola, caboc’o, quê que tá pensando? É... Tá pensando que é pouca porcaria? Olha aí. E no fim, a gente chega aqui e... "boa noite" e... NADA?!
BRILHANTINA – (Gargalhada)
CANASTRA – Ô, Brilhantina.
BRILHANTINA – (rindo) Ham?
CANASTRA – Vê se te manca aí que agora eu tô falando sério, caboc’o!
BRILHANTINA – (Gargalhada)
CANASTRA – (Divertido) Mas o outro tá pensando que eu sou o quê? Tá pensando que sou palhaço? Não, porque tem muita gente que acha que artista é palhaço, viu? É. Tem muita gente por aí que acha que pra subir num palco tem que ser palhaço, vê se te serve. Agora, eu vou dizer pros senhores o que é que e a acho dessa gente que pensa assim: eu acho que eles... que eles tão certos (e se diverte). É. Tão certos porquê, aqui entre nós, e que ninguém nos ouça, tu acha que gente séria, mas séria mesmo, vai fazer graça pros outros rir? Não, né caboc'o. Agora, triste mesmo foi minha situação agora pouco, é ou não é? Sim, porque de ser palhaço eu já tô até conformado, porque já vi que a sério eu não ia dar certo na vida mesmo. Agora, sente o drama: chegar aqui pra fazer palhaçada e não ter ninguém aí desse lado pra rir dela... ah, é dose, caboc'o, é ou não é?
(A esta altura os ATORES, que vieram entrando pelas passagens da cortina, já estão bem aparentes. MÃEZINHA se adianta disfarçando, sorrindo para o público.)
MÃEZINHA – (sorridente) Ruy.
CANASTRA – (divertido) Ei, o quê é que tu tá fazendo aqui?! Eu ainda nem te anunciei, nem nada.
MÃEZINHA – (sorrindo para a platéia, entredentes) Não fala bobagem, Ruy.
CANASTRA – Vai mulher, desinfeta daí, vai, vai, vai...
MÃEZINHA – RUY!
CANASTRA – (para a platéia, divertido) Mas será possível que nem na hora que eu tô aqui no palco fazendo o meu papel de palhaço esta mulher me dá uma folga?
MÃEZINHA – RUUUUUUYYYY!!!
BRILHANTINA – (Gargalhada)
(De costas para o público e ralhando com ele, MÃEZINHA tenta tirar CANASTRA de cena puxando-o pelo braço. Não se entende o que ela diz.)
CANASTRA – (se livrando dela, sempre divertido) ...que falando bobagem o quê, mulher; eu só tô aqui dizendo a verdade, é ou não é? Pode perguntar aí pra eles.
MÃEZINHA – (irritadíssima) A cachaça, isso sim é o que tá falando. A cachaça.
CANASTRA – Eu só tava dizendo aqui que a pior coisa que existe no mundo é alguém subir aqui em cima pra fazer palhaçada...
MÃEZINHA – RRRUUUUYYY!!!
BRILHANTINA – (Gargalhada)
CANASTRA – TEATRO... eu disse palhaçada? Eu disse palhaçada, Brilhantina? Não, não, não, não, não! Teatro, pra fazer TE-A-TRO.
BRILHANTINA – (Gargalhada)
(MÃEZINHA se afasta rapidamente para o outro canto do palco. O spot-móvel fica em CANASTRA.)
CANASTRA – ...Eu só estava dizendo aqui pro pessoal que... (segue falando)
MÃEZINHA – Brilhantina!
BRILHANTINA – (Gargalhada)
CANASTRA – (iluminado, segue falando)
MÃEZINHA – (no escuro, furiosa) AQUI, BRILHANTINA!
BRILHANTINA – (interrompe a gargalhada) Opa! (e gira o spot-móvel para MÃEZINHA).
MÃEZINHA – (como apresentadora) Senhoras e senhores, rapazes e senhoritas, respeitável público: (solene) É numa hora tão... afável, né?.. como essa que uma artista se embarga e, procura que procura, não encontra palavras para dar uma satisfação para o seu distinto público. Sim, querido público, uma artista como eu, que tem o seu saber-o-que-fazer num palco; uma artista como eu, da qual, como se diz no vulgo, tem janela...
(CANASTRA e BRILHANTINA mal podem conter o riso.)
MÃEZINHA – (comovida) ...uma artista como eu, cuja vida ofertou, todinha nas artes dramáticas – numa hora dessas tem que fazer das tripas coração e vir dizer cara a cara: perdoe. Perdoe, amado público. Como se diz naquele velho ditado popular, errar é humano...
(CANASTRA e BRILHANTINA mal podem conter o riso.)
MÃEZINHA – A nossa Companhia nunca terá deixado por menos para ofertar o melhor de si para o seu querido público, cujo respeito à família brasileira sempre foi seu lema. Mas sempre haverá coisas que são imprevisíveis antes... quer dizer; coisas que não dá pra adivinhar. Porque errar é humano, peço vênia para repetir, e um artista também erra, porque também é feito de carne e osso... Sim, respeitável público, um artista também é feito de carne, osso... e coração.
(CANASTRA E BRILHANTINA a interrompem com sonoras gargalhadas)
MÃEZINHA – RUY!
CANASTRA – (Gargalhando) Olha aí, Brilhantina, tu tá vendo, né? Tu tá aí de prova...
MÃEZINHA – RUY CANASTRA!!
CANASTRA – Depois diz que o cachaceiro aqui sou eu...
MÃEZINHA – (azul) Cala a boca, Ruy!
CANASTRA – Não, porque só pode tá de pileque, é ou não é, Brilhantina?
BRILHANTINA – Ô... (gargalhada).
MÃEZINHA – Cala essa boca, Ruy! Cala essa latrina pelo amor de Deus...
CANASTRA – Ou então é a idade...
MÃEZINHA – (uma fúria) RUY CANASTRA!
CANASTRA – É... só pode estar ficando gagá.
MÃEZINHA – (perdendo a tentativa de compostura) Idade tem a tua mãe, seu desgraçado!
CANASTRA – (divertidíssimo) Brotinho é que a minha mãe não ia ser, né? (gargalhada)
BRILHANTINA – (Gargalhada)
MÃEZINHA – Desinfeta daqui desse palco, seu cachaceiro.
CANASTRA – Velhice é fogo...
(Alguns ATORES, vendo a situação esquentar, se arriscam a chamar a atenção de MÃEZINHA para o fato de que ela está perante o respeitável público).
MÃEZINHA – Isso é o que se chama cuspir no prato que comeu...
CANASTRA – Diz aí se não é fogo, Brilhantina.
BRILHANTINA – Ô... (gargalhada)
MÃEZINHA – Não sei como é que uma criatura dessas ainda tem a coragem de avacalhar com a única coisa que lhe restou pra ganhar o pão.
CANASTRA – É que eu não sou muito chegado a pão mesmo. O meu negócio é vinho... (E morre de rir)
BRILHANTINA – (Gargalhada)
MÃEZINHA – Ô seu filho da... (os ATORES a seguram) Peraí, peraí... Mas sabe de quem é a culpa disso tudo? É minha mesmo. (batendo na própria cara) Eu é que não devia de ser tão idiota e deixar esse cafajeste apodrecer lá naquele cirquinho de quinta categoria do onde eu tirei ele.
CANASTRA – (Gargalhada)
MÃEZINHA – (para CANASTRA) Que tu sabe muito bem que se não fosse a estúpida aqui, o teu lugar hoje em dia era caído de bêbado numa sarjeta, com os cachorro te lambendo a boca. (para os ATORES) Me larga!
CANASTRA – (divertido) Grande coisa: me tirou da merda pra me jogar na bosta.
BRILHANTINA – (Gargalhada)
MÃEZINHA – Ah, é? Seu.,, (e avança aos socos em CANASTRA)
(CANASTRA domina MÃEZINHA e dá-lhe uns tapas. Os ATORES envolvem os dois. O GRUPO sai de cena no meio de uma gritaria.)
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