quarta-feira, 4 de abril de 2007

Cena 16

SEGUNDA CENA DE CANCIONINA SONG

1ª Fase – As Razões Do Personagem

No camarim de MÃEZINHA.

MÃEZINHA(resmungando) Três vez cinco, quinze, a um, três vez dois, seis, e um sete, a nada, três vez nada...

(Entra CANCIONINA. Veste-se à moda atual. Talvez em brim azul, cabelos soltos, sacola peruana)

CANCIONINA – Boa noite.

MÃEZINHA(alto) Hum. (Nas contas) Três vez seis, dezoito a um, três vez nove... três vez nove?

CANCIONINA – Posso falar com a senhora?

MÃEZINHA(sem olhar) Não tem lugar no show não, meu amor, o mar não tá pra peixe... vinte e sete! Três vez nove vinte e sete, a dois...

CANCIONINA(firme) Aleluia Simões.

MÃEZINHA – E se é da Avon pode... (Vê) Cancionina Song!

CANCIONINA – Artes. Cancionina Artes. A senhora está muito ocupada?

MÃEZINHA – Ocupada? Eu? Mas nem que tivesse, meu amor, pra tão ilustre personagem... Senta, vai sentando...

CANCIONINA – Não, obrigada, eu...

MÃEZINHA – Senta aí... sabe como é, é casa de pobre, né?

CANCIONINA – Eu já estou de saída.

MÃEZINHA – E não repara na desarrumação. Eu bem que procuro deixar tudo arrumadinho, mas durante o espetáculo não dá mesmo, né? É um tal de tira roupa, põe roupa, que nem Cristo agüenta... mas e o Campônio? Ele não estava com você? (íntima) Gostou da flor? Uma beleza, não é? E ele então, todo bobo, só faltava babar... olha que pelo jeito isso daí vai dar em coisa, heim? (ri)

CANCIONINA – Eu só queria uma palavrinha com a senhora antes de ir m'imbora.

MÃEZINHA – Mas onde foi que ele se meteu, aquele lá?... Aposto como tá no camarim dele sonhando, né? (Na direção da porta) Campônio... Ô Brilhantina me chama ali o... (volta-se) Embora?!

CANCIONINA – É.

MÃEZINHA(No choque) Engraçado, parece que eu já fiz esta cena hoje.

CANCIONINA – Esta não. Foi uma outra cena com um outro personagem. Só que ele não foi. Mas eu vou mesmo, já está decidido.

MÃEZINHA – Ah...

CANCIONINA – Amanhã vem um caminhão aqui no teatro buscar todas as minhas coisas que eu botei no espetáculo. Os cenários, as plumas, as roupas... a senhora sabe o que é. Por favor, mande separar tudo, tá?

MÃEZINHA – Vai montar Companhia, né?

CANCIONINA – Companhia?! Não... São uns amigos que inventaram de dar uma festa a fantasia lá no clube e me pediram o material. Aniversário de um deles.

MÃEZINHA – Então por que?

CANCIONINA – Porque são muito amigos do papai, eu não ia dizer que não...

MÃEZINHA – Não, não é isso.

CANCIONINA – O que?

MÃEZINHA – Você... ir embora assim... Alguém fez alguma coisa de errada? Que você não gostou? Eu dispenso agora. Agora mesmo. Diz quem foi?

CANCIONINA – Não é nada disso...

MÃEZINHA – Os cenário... Você não gosta dos cenários...

CANCIONINA – Olha...

MÃEZINHA – Ah, já sei! Não, não, não, não precisa me dizer mais nada que eu já sei. São os figurinos. Mas é claro que são os figurinos. Mas olha que coisa mais engraçada, meu amor... pois você sabe que eu já tava mesmo há muito tempo pra te sugerir que a gente mudasse todas as roupas que você usa no espetáculo... Hoje mesmo eu passei numa loja ali da vinte e cinco e vi uma renda gripir, meu amor... linda, linda, linda... e francesa mesmo, heim?! Daquela que está se vendo que é da legítima...

CANCIONINA – Aleluia, por favor...

MÃEZINHA – ...pois assim que eu bati os olhos na renda eu disse pra mim mesma: essa foi feita de encomenda pra segunda entrada de Cancionina...

CANCIONINA(forte) Não adianta, Aleluia. Não adianta! Esta é a última cena que eu faço neste espetáculo.

MÃEZINHA – Mas por que?

CANCIONINA(algum embaraço) Bem...

MÃEZINHA – Diga, meu amor, diga. Neste mundo tem remédio pra tudo, só não tem remédio pra morte.

CANCIONINA – Bem, é que eu não queria dizer nada pra não parecer grosseira.

MÃEZINHA – Grosseira?!

CANCIONINA – É. Apesar de tudo até que eu aprendi alguma coisa por aqui.

MÃEZINHA – Se aprendeu?! E ainda tem muito que aprender. Porque você é maravilhosa, meu amor. Você é o que se pode dizer "uma atriz nata".

CANCIONINA – Pois é exatamente aí que está o problema.

MÃEZINHA – Mas que problema?

CANCIONINA – Olha, Aleluia, pra falar sinceramente, isto tudo daqui não tem mais sentido.

MÃEZINHA – Isto tudo?!

CANCIONINA – É. Este teatro. Este tipo de teatro que você faz.

MÃEZINHA(sincera) Está errado, é?

CANCIONINA – Não é propriamente errado... Ouça: desde que eu me interessei pelo negócio eu procurei conversar com algumas pessoas... Na verdade eu conheci muita gente e andei lendo algumas coisas e... (diretamente) Aleluia, o que é que você sabe sobre técnica de interpretação? Técnica de corpo, de voz, impostação, dinâmica, plasticidade. O que é que você sabe sobre Stanislavski, Grotowski... sobre métodos de interpretação?

MÃEZINHA(fica olhando para ela)

CANCIONINA – Hein?

MÃEZINHA – Bom, quer dizer... Eu bem que sempre achei que a gente precisa estudar que é pra ser alguém na vida... Mas sabe como é: a gente era sempre trabalhando, né? Era deixa uma companhia pega outra... pra ter pelo menos o que comer, né? E é claro que eu sempre achei que aquilo não era vida pra ninguém... e sempre quis fazer a minha companhia para sair daquela vida e poder fazer teatro... mas teatro mesmo, ouviu? Porque eu vou dizer uma coisa pra você: não pensa que eu não dou valor viu, meu amor? Eu dou o maior valor...

CANCIONINA(seca) A senhora já ouviu falar em método de interpretação?

MÃEZINHA – Eu?...

CANCIONINA – É. A senhora.

MÃEZINHA(muito embaraçada) Não. Quer dizer, eu via como os outros faziam, né? E ia fazendo... Olha, eu já nem me lembro... (tentando relaxar) Eu já nasci no palco, meu amor, nem me lembro quando foi a primeira vez que...

CANCIONINA – Você precisa parar de repetir isso.

MÃEZINHA – O quê?

CANCIONINA – Ter nascido num palco não te dá de maneira nenhuma o direito de permanecer nele a vida toda.

MÃEZINHA – Não?!

CANCIONINA(encara-a)

MÃEZINHA – Ah... Ah, isso é verdade.

CANCIONINA – Será possível que você não percebe, Aleluia? Será possível que você não percebe que isto tudo não tem mais sentido nenhum? Aliás, nunca teve. A arte... e o teatro também é claro... o teatro não pode de maneira alguma ter uma função alienante. Um artista... um personagem... eu, por exemplo. Eu não quero, eu NÃO POSSO absolutamente concordar com ser apenas um objeto todo enfeitado com o único propósito de divertir o público... ou de despertar nele apenas emoções babacas.

MÃEZINHA(Timidamente) Babacas?!

CANCIONINA – Babacas sim, babacas. Coisas que servem apenas para distrair o público de seus verdadeiros problemas...

MÃEZINHA(sincera) Mas olha que coisa!...

CANCIONINA – E isso é um crime. Um grande crime!

MÃEZINHA – Divertir, é?!

CANCIONINA – Um verdadeiro artista TEM que estar inserido no seu tempo...

MÃEZINHA – O que é a instrução, hein?!

CANCIONINA - ...e tem que usar a sua arte como uma arma de denúncia, que acusa, que polemiza. Enfim, a verdadeira arte é aquela que aponta novos caminhos para a sociedade.

MÃEZINHA – Como assim?

CANCIONINA – Como assim o quê, Aleluia?

MÃEZINHA – Como assim... quer dizer... como assim disso tudo aí que você disse, né? Que, aliás, diga-se de passagem, me deixa até emocionada quando vejo uma pessoa de estudo, viu? Que sabe falar...

CANCIONINA(impaciência)

MÃEZINHA – Então... agora, como é que um artista, se quiser ser... verdadeiro, não é isso? Assim, por exemplo... o que é que ele tem que acusar, por exemplo?

CANCIONINA(decidida) Por exemplo, a miséria.

MÃEZINHA(Fica olhando pra ela durante algum tempo e depois começa a rir)

CANCIONINA(irritada) O que foi? Eu disse alguma coisa engraçada?

MÃEZINHA – Não, meu amor, de jeito nenhum... sabe o que é? É que eu tava me lembrando de uma conversa que eu tive um dia desses com a dona... com o Campônio e... mas olha só que coincidência mais engraçada!... Imagina você que eu estava dizendo pra ele que agora que você tinha entrado no espetáculo, né? Que eu achava que agora a gente devia mudar um pouco o repertório, viu? Que a gente agora devia ensaiar coisas mais... como é que chama? Mais assim... acusando a miséria, né? Eu estava dizendo isso ainda outro dia, você acredita numa coisa dessas? E agora vem você e me fala isso... parece até que eu estava adivinhando não é, meu amor? Aliás, por falar nisso eu até tinha me lembrado daquele drama muito bonito que é sobre um mendigo, sabe qual é? Chama "Deus Lhe Pague", conhece?

CANCIONINA(irritada) Conheço.

MÃEZINHA – Então... você não acha que esse drama vem mesmo a calhar?

CANCIONINA – Eu acho um lixo. Eu acho esta peça, este tipo de teatro uma idiotice, um verdadeiro lixo. (e vai sair)

MÃEZINHA – Cancionina...

CANCIONINA(Volta-se) E tem mais uma coisa. Eu resolvi que não quero mais ser um personagem de teatro. O teatro não é um meio de expressão adequado ao nosso tempo. E eu sou uma mulher atual, entende? Moderna. Estamos na época da grande técnica, das grandes máquinas, da grande massa. Não quero que minha mensagem atinja apenas umas pouquinhas centenas de pessoas cada noite. Quero que ela atinja milhares e milhares de pessoas de uma vez só. É muito mais lógico. Muito mais prático. (Olha para MÃEZINHA. Transita.) Eu sei que posso estar parecendo dura pra senhora, Aleluia, mas é essa a dura realidade nos dias que correm. Por isso agora eu vou ser personagem de cinema e televisão. (Olha de repente pro relógio) Por falar nisso eu já estou atrasada pra reunião. Estou tratando com papai da compra de um canal de televisão. Adeus, Aleluia. (Vai sair)

MÃEZINHA(Firme) Cancionina Song.

CANCIONINA – Artes. Cancionina Artes, por favor. Eu mudei meu nome. Achei este mais adequado.

MÃEZINHA(sem olhar para ela) Seja lá qual for o seu novo nome, a sua nova profissão... mas não seja mal criada com as pessoas (o público). Não são muitas... são pouquinhas... mas elas te deram toda a atenção até agora. (PAUSA) E olha: ainda é um musical. (E antes de se retirar faz sinal para os bastidores)

(Ao sinal de MÃEZINHA desce o telão dos corações, agora com um coração aberto bem no centro. Ao mesmo tempo em que entram a música e BOYS que cantam e dançam com CANCIONINA)

2ª Fase – (Alegoria) Segunda Alegoria Do Coração – O Adeus

CANCIONINA – Boa noite.
Estou me despedindo.
Já vou indo.
Não tenho
Mais nada co'esta história
Sem glória.

BOYS – Agora vou cantar outra canção
Pra multidão

CANCIONINA – Não quero mais saber do coração

BOYS – De papelão

CANCIONINA – Eu quero é habitar sua canção

BOYS – Seu coração

(De dentro do coração o arremate:)

CANCIONINA – Comente-me com os seus

E adeus

(O coração vai se fechando enquanto:)

BOYS – Adeus...

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