quarta-feira, 4 de abril de 2007

Cena 3 (2a. parte)

Segunda Parte

Na qual se vêem os personagens em ação

Cena 3

SOBRE OS ADMIRADORES DO TEATRO

No camarim de MÃEZINHA.

É um espaço pequeno onde cabe uma casa toda. Cama, fogão, mesa, geladeira, sofá, armários, televisão... Uma casa brasileira com todos os seus utensílios e inuntensílios. Onde cabe um camarim. Cabides com figurinos, bancada de maquiagem, espelho... E é tudo arrumadinho e limpo, ao contrário do que se poderia imaginar. Tapetes feitos à mão, cortinas de algodãozinho, toalhinhas bordadas ou de crochê... potes, botijão de gás, liquidificador, todos devidamente vestidos com suas saias de algodão xadrez. Mulheres como MÃEZINHA nasceram e vivem a vida em circos ou Companhias ambulantes, morando ou em barracas ou em trailers ou em camarins e até em ônibus adaptados. Artistas-donas-de-casa, elas aprenderam a transformar o espaço onde moram temporariamente em casas. E conseguem.

(MÃEZINHA está muito atarefada no fogão, ao mesmo tempo em que tira a roupa do número anterior)

DONA VIRGÍNIA – (fora) Dá licença...

MÃEZINHA – Ham.

DONA VIRGÍNIA – (fora) Ô de casa...

MÃEZINHA – Heim.

DONA VIRGÍNIA – Ô de casa, dá licença... (e aparece na cortina da porta).

MÃEZINHA – Heim. (Olha de relance para DONA VIRGÍNIA) Quê que foi?

DONA VIRGÍNIA – Eu tava chamando desde lá da porta, é...

MÃEZINHA – (ocupada) Ah.

DONA VIRGÍNIA – ...Mas eu não encontrei ninguém e fui entrando...

MÃEZINHA – (ocupada) Sei.

DONA VIRGÍNIA – A senhora me desculpa se eu estou incomodando...

MÃEZINHA – (ocupadíssima) Olha, meu amor, o show tá completo e ninguém aqui está precisando de artista, não. E de mais a mais, o que está entrando na bilheteria está dando mal e mal pra pagar os contratados, que dirá pra contratar número novo. Se tu é de teatro já deve estar sabendo que o mar não tá pra peixe.

DONA VIRGÍNIA – Quem! Eu? De teatro?

MÃEZINHA – (ocupada) É.

DONA VIRGÍNIA – Ai, quem me dera...

MÃEZINHA – (ocupada) Chi... Se é da Avon então nem precisa perder o seu tempo.

DONA VIRGÍNIA – Da Avon?!?

MÃEZINHA – O dinheiro por aqui anda mais curto do que manga de colete.

DONA VIRGÍNIA – (divertida) Mas que Avon, que nada, dona coisa, eu sou a dona Virgínia...

MÃEZINHA – (depois de olhar pra ela, sem reconhecer) Ah, sei.

DONA VIRGÍNIA – Não, sabe o que é? É que eu moro aqui perto do teatro, aqui no duzentos e trinta e seis da ....... (nome de uma rua próxima ao teatro), sabe onde é?

MÃEZINHA – (ocupada) Não.

DONA VIRGÍNIA – Então... e como eu adoro teatro, toda vez que eu sei que tem uma Companhia neste daqui eu dou um pulinho... assim, pra bater um papinho, sabe como é? (rápida) Não na hora do espetáculo, é claro, que é pra não estorvar, né? Deus me livre.

MÃEZINHA – (ocupadíssima) Isso é.

DONA VIRGÍNIA – Então. Eu quero conversar com os artistas...

MÃEZINHA – (ocupada) Ah.

DONA VIRGÍNIA – Vocês artistas são umas pessoas tão... assim tão... sensitivas, né? Não é assim que se diz?

MÃEZINHA – (ocupada) Não sei.

DONA VIRGÍNIA – Quer dizer, pelo menos na minha opinião, né?

MÃEZINHA – (ocupada) É.

DONA VIRGÍNIA – Mas... pera um pouco... Eu parece que estou reconhecendo a senhora de algum lugar...

MÃEZINHA – (ocupada) Ham.

DONA VIRGÍNIA – NOOOOOSSA!!!

MÃEZINHA – Que foi?

DONA VIRGÍNIA – Mas não é a senhora que faz aquela... A mãe, aquela velhinha, no drama?!

MÃEZINHA – (ocupada) É.

DONA VIRGÍNIA – Mas quem havia de dizer! Vocês artistas são de morte mesmo, heim? Imagine a senhora que eu pensei que fosse uma velha mesmo, né? E quando acaba a senhora é tão moça ainda...

MÃEZINHA – Moça?!

DONA VIRGÍNIA – Então.

MÃEZINHA – (atenta) Acha, é?

DONA VIRGÍNIA – Nossa! Pois a senhora não viu que eu nem reconheci? Eu fiquei aqui falando, falando e nem me passou pela idéia que fosse a senhora.

MÃEZINHA – (se olhando no espelho) Não reconheceu mesmo, é?

DONA VIRGÍNIA – Mas nem de longe, eu não estou dizendo pra senhora? E se não é a senhora mesmo que me diz eu ainda não acreditava...

MÃEZINHA – É-é? (e no espelho).

DONA VIRGÍNIA – Pois no palco a senhora fica uma velha perfeita, quem é que podia imaginar que a senhora é ainda tão nova...

MÃEZINHA – (de repente) Mas o quê é que está fazendo aí na porta? Entra, entra.

DONA VIRGÍNIA – Ai, bregada... (e começa a tirar o sapato)

MÃEZINHA – Mas o quê que está fazendo agora?! Mas não precisa não, o que é isso.

DONA VIRGÍNIA – Não senhora, aí está tudo tão limpinho.

MÃEZINHA – Ora, que nada, sábado é dia de faxina de novo.

DONA VIRGÍNIA – Não, não, de jeito nenhum... (e entra com os sapatos na mão).

MÃEZINHA – Senta aí, dona...

DONA VIRGÍNIA – Ai, bregada.

MÃEZINHA – Como disse mesmo que se chamava?

DONA VIRGÍNIA – Virgínia, é...

MÃEZINHA – Ah, então.

DONA VIRGÍNIA – Ai, mas se a senhora soubesse como eu tenho inveja da senhora!

MÃEZINHA – De mim?!

DONA VIRGÍNIA – Então, de vocês todos, os artistas.

MÃEZINHA – Ah...

DONA VIRGÍNIA – Ai, eu acho tão lindo! Tão lindo! Olha, eu vou dizer uma coisa pra senhora que muito pouca gente sabe, viu? Mas o maior sonho da minha vida era ser artista... E olha que até que eu acho que tenho um pouco de jeito, viu? Porque quando eu era garota... assim, meninota, né?... não tinha uma festa no colégio que a professora não me pusesse ou pra recitar ou pra cantar ou qualquer coisa assim.

MÃEZINHA – Não diga...

DONA VIRGÍNIA – Ah, então. Eu sempre fui apaixonada. Até uma época aí – não faz muito tempo, não – me convidaram pra trabalhar num teatro aí... se chamava, se não me engana, Sociedade Literodramática da Paróquia de São Dionísio, é...

MÃEZINHA – É?

DONA VIRGÍNIA – Então. Me deram o escripi e tudo. Parece até que eu ia fazer papel de má. Ai, menina, eu adoro papel de má, eu fiquei louca... estava tão influída pra ir... Mas daí eu fiquei naquela coisa de vou-não-vou, vou-não-vou... e acabei não indo. Família, sabe como é, é um estorvo mesmo.

MÃEZINHA – O marido não deixou...

DONA VIRGÍNIA – Que marido, menina? Ai, a senhora tem cada uma... Eu ainda sou solteira...

MÃEZINHA – Ainda?!

DONA VIRGÍNIA – Solteirinha da Silva, graças a Deus.

MÃEZINHA – Ah, sei.

DONA VIRGÍNIA – Família que eu digo é a minha mãe que fica me enchendo a paciência: é, porque teatro não é lugar pra moça direita...

MÃEZINHA – Ah.

DONA VIRGÍNIA – ... e porque vai ensaiar de noite, e porque não é hora de moça solteira andar na rua, porque depois fica aí falada e não arruma casamento mesmo... e essas coisas, a senhora sabe como é mãe, né?

MÃEZINHA – Sei.

DONA VIRGÍNIA – Ah, sim, porque a senhora pensa que ela sabe que eu vim aqui? Qui... Ela nem sonha, minha filha, porque se sonhasse ela aprontava um banzé e não me deixava sair de casa nem por um decreto. Ela diz que não quer que eu me dê com gente de teatro, porque é tudo marginal, ninguém vale um tostão.

MÃEZINHA – Ah...

DONA VIRGÍNIA – Ah, sim porque se não fosse isso, minha filha, é, há séculos que eu já tinha entrado pro teatro. Porque é como eu digo pra senhora, o maior sonho da minha vida era estar em cima de um palco...

(Desce um telão fantasia sobre o camarim de MÃEZINHA.)

MÃEZINHA – E está.

DONA VIRGÍNIA – Heim?!

MÃEZINHA – Acontece, meu amor, que a senhora está em cima de um palco.

DONA VIRGÍNIA – Ah, não... eu sei... Mas eu digo assim, na hora do drama... representando, né? Fazendo assim um papel bem dramático e todo aquele mundo de gente olhando pra mim. Ai, credo... pra dizer a verdade a única coisa que eu morro de medo de ser artista, mas tenho um medo que me pélo toda, é de imaginar que fica aquele monte de gente olhando pra gente, né? Ui, credo... só de pensar já me dá até calafrio.

MÃEZINHA(Dá um sinal e se acendem as luzes da platéia.)

DONA VIRGÍNIA(Vendo o público, dá um grito e fica estatelada no meio do palco.)

MÃEZINHA – Isso daqui é Teatro, dona Virgínia. E aqui até o sonho mais antigo pode ficar de verdade.

DONA VIRGÍNIA – Ai, minha Nossa Senhora do Ó.

MÃEZINHA – Vai lá, Dona Virgínia, e faz o seu sonho ficar de verdade.

DONA VIRGÍNIA – Mas... agora?

MÃEZINHA – Agora, antes que seja tarde demais.

DONA VIRGÍNIA – Mas eu nem estudei o escripi. Eu nem sei qual é o meu papel... .

MÃEZINHA – O público também não sabe. De modos que qualquer coisa que a senhora fizer eles vão achar que é assim mesmo.

DONA VIRGÍNIA – Mas eu não sei nem o que eu vou dizer... .

MÃEZINHA – A senhora diz o que a senhora está sentindo.

DONA VIRGÍNIA – Eu?! Mas eu só estou sentindo medo.

MÃEZINHA – Então diz isso... Maestro.

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