quarta-feira, 4 de abril de 2007

Cena 6

SOBRE A SOBREVIVÊNCIA NO TEATRO

Camarim de MÃEZINHA.

DONA VIRGÍNIA – Uma boa bisca é o que ela deve de ser, não é não?

MÃEZINHA – Ham. Quem não te conhece que te compre.

DONA VIRGÍNIA – Ah, eu não te disse? Eu logo vi. Até no drama, a senhora sabe? Assim que ela apareceu, eu logo disse: Hum essa daí boa coisa não deve ser não... E olha aí. E ainda por cima ela vem lhe dizendo nomes.

MÃEZINHA – Nomes? Que nomes? Palavrão?

DONA VIRGÍNIA – Sei lá, mas na hora eu achei que era gozação pra cima da senhora.

MÃEZINHA – Não reparei.

DONA VIRGÍNIA – Olha, se eu bem ouvi, parece que ela chamou a senhora de aleluia...

MÃEZINHA – Mas eu me chamo Aleluia.

DONA VIRGÍNIA – Heim?!

MÃEZINHA – Aleluia Simões.

DONA VIRGÍNIA – Ah, sei... Puxa, mas que nome bonito!

MÃEZINHA – É.

DONA VIRGÍNIA – É sim.

MÃEZINHA – Então.

(Pausa de constrangimento.)

DONA VIRGÍNIA – Mas – desculpa perguntar, viu? – mas o que é que a senhora tanto mexe aí nessa panela?

MÃEZINHA – É a massa do croquete.

DONA VIRGÍNIA – Croquete?! Hum, quer dizer então que hoje temos croquetes pra janta?

MÃEZINHA – Qui janta, meu amor? Qui janta? É pro bar do seu Adalberto.

DONA VIRGÍNIA – Do seu Adalberto? O seu Adalberto da Cruz de Malta ali da esquina?! Do quarteirão de cima?!

MÃEZINHA – É. Esse daí.

DONA VIRGÍNIA – Puxa! Eu conheço o seu Adalberto fazem anos e não sabia que ele era assim tão amigo de uma artista coma senhora.

MÃEZINHA – Amigo?!

DONA VIRGÍNIA – Pra fazer croquetes pra ele...

MÃEZINHA – Qui amigo o quê, meu amor, eu só forneço os croquetes pro bar dele. Cem unidades por dia a três cruzeiros a unidade.

DONA VIRGÍNIA – Puxa!

MÃEZINHA – Isso e mais a pipoca e mais o pirulito que o Campônio vende no intervalo, dão uma mãozinha, né? Não é lá grande coisa, mas se eu for contar só com o dinheiro da bilheteria eu tô frita.

DONA VIRGÍNIA – Não me diga!

MÃEZINHA – Ah, meu amor, logo que a gente se instala numa praça e que eu vejo que a temporada vai durar algum tempinho, eu faço logo a via sacra dos bares da redondeza pra pegar encomenda. Cê não conhece nenhum bar que queira não? Eu também forneço coxinha, empada, esfirra, quibe...

DONA VIRGÍNIA – Ai, dona coisa, eu acho a senhora uma sacrificada.

CANASTRA(entrando) Com’é mulher... ainda não tá pronta pro número do tempero?!

MÃEZINHA – Faça o favor de não vir pra cá me encher o saco que eu não preciso de ninguém me dizendo a hora que eu tenho que estar pronta pra entrar em cena.

CANASTRA(divertido) Opá! Será que eu disse alguma coisa errada? (para a cabine de luz) Ô, Brilhantina, tu ouviu se eu disse alguma coisa errada?

BRILHANTINA(no sarro) É, meu chapa, o negócio hoje não tá bom pro teu lado, não.

CANASTRA(para Dona Virgínia) Agora a senhora me diga: eu disse alguma coisa errada?

DONA VIRGÍNIA – Quer dizer...

MÃEZINHA – É. Porque tem uns e outros aí, viu, Dona Virgínia? Que são muito engraçados: já acharam a cama feita e ainda tem a coragem de botar banca. É.

CANASTRA – Ô Brilhantina, tu acha que esse uns e outros aí, sou eu?

BRILHANTINA(Gargalhada)

MÃEZINHA(para DONA VIRGÍNIA) Porque eu, meu, pra ter o que comer na vida tive que dar duro. Quer dizer: tive não, TENHO, né? Porque eu que não me vire, que eu quero ver se alguém vem me dar alguma coisa de graça.

CANASTRA(divertido) Ô... ô Mãezinha, como é que tu me passa um esculacho desse aí, na frente das visitas? Essa moça aí nem me conhece nem nada, ela vai pensar o quê de mim?

BRILHANTINA(Gargalhada)

MÃEZINHA – Agora, o que eu gostava mesmo era ver essa cambada passando pelo que eu já passei na vida: morando em barraca de lona como eu já morei. Ou debaixo de arquibancada de circo.

DONA VIRGÍNIA – Ai, dona coisa do céu.

MÃEZINHA – Eu só queria ver.

DONA VIRGÍNIA – Olha, dona Aleluia, eu não tenho nada que ver com isto, viu? Mas eu se fosse a senhora largava o teatro.

CANASTRA(divertido) Largava o quê?!

BRILHANTINA(gargalhada)

DONA VIRGÍNIA – Por que é que a senhora não entra pra televisão?

CANASTRA(sarro) Opá.

MÃEZINHA – Televisão?!

DONA VIRGÍNIA – É. Porque tem muita artista de novela que não representa uma velha tão bem como a senhora e no entanto está lá, né? Aquelas sirigaitas, só se exibindo, ganhando os tubos e sem precisar nem fazer croquete pra fora, nem nada... porque diz que na televisão eles pagam uma fortuna, a senhora sabia? É, minha filha...

CANASTRA – Brilhantina, porque é que tu não entra pro cinema?

BRILHANTINA – Só se for lanterninha...

CANASTRA e BRILHANTINA(Gargalham)

DONA VIRGÍNIA – Não é sim: porque teatro... Teatro é uma coisa que ninguém mais liga, pensa que eu não vejo? Enquanto que televisão todo mundo vê... É sim, minha filha, quem é que não tem sua televisão hoje em dia?

MÃEZINHA – Olha, meu amor, no circo a gente tem um ditado que diz... porque eu nasci num circo, a senhora sabia?

DONA VIRGÍNIA – É-é?

MÃEZINHA – Nasci. Meu pai e minha mãe já eram artistas... Mas isso no tempo que o circo era circo, né?

CANASTRA(Nas costas de MÃEZINHA) Chi... (faz tempo...)

MÃEZINHA(Mexendo a panela) Então. Lá o pessoal tem um ditado que diz que gente de circo tem serragem nas veias. E é mesmo. Teatro é uma coisa, viu? Conheço muita gente que se mandou. Foram tentar outra coisa, né? Uma coisa mais garantida e tal... Pois olha: quase todos acabaram voltando. É a serragem. Vai te dando uma tristeza... Você passa o dia todo esperando. Mas esperando o quê? Você sabe muito bem que pra você não vai ter nenhum espetáculo de noite, né? Mas assim mesmo você passa o dia todo esperando. E de noite... Ah, de noite é que é duro. De noite fica de noite mesmo, né? Tudo escuro, quieto... As luzes não acendem, não tem a cara do público, não tem as risadas... Não tem a festa! Você já foi em alguma festa que chegou lá e não teve? Pois é igual. Daí é batata, você não agüenta. Na primeira oportunidade, bumba, lá tá você com a cara pintada de novo.

CANASTRA(Com gesto e som imita um violino)

BRILHANTINA(gargalhada)

MÃEZINHA(percebendo) Vá, vá, vá, vê se pára com essa palhaçada, vá. Vem aqui fazer alguma coisa de útil na vida. Vem experimentar o tempero da massa.

CANASTRA – Opá! Taí um trabalho que eu não me incomodo de fazer. (provando da colher que MÃEZINHA lhe dá) Hum...

(Toda a luz se apaga e fica o spot-móvel sobre CANASTRA provando o tempero)

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